A depressão revelou-se como um fenômeno
clínico, que aponta para uma estrutura – neurose ou psicose. Se a psiquiatria
responde, na maioria das vezes, com o medicamento que visa amenizar a dor “um
comprimido para o deprimido” –, a psicanálise abre a possibilidade de o sujeito
remediar o próprio sofrimento com a palavra.
Voltemos ao caso clínico, a fim de ilustrar
a articulação existente entre teoria e prática clínica. O marido e a esposa, o
marido havia morrido subitamente, devido a uma parada cardíaca, que não pôde
ser revertida pelos médicos. Até os dias atuais, a esposa, refere que a perda
lhe é inaceitável e que acredita que tenha sido um erro médico.
Ressente-se por não ter tido
tempo de se despedir do marido e reconhece que, desde então, não conseguiu mais
chorar, tendo se tornado “uma pessoa fria e congelada”.
Ao longo de seu percurso clínico, questões
importantes foram emergindo no discurso d esposa, possibilitando a instauração
do trabalho analítico. Uma de suas falas é determinante: “ou eu mato meu marido
ou ele me mata”.
Pela primeira vez, seus olhos se enchem de
lágrimas e ela diz o quanto se sente “sufocada” por não conseguir, até hoje,
chorar pela morte do seu marido.
Este dizer, inicialmente, apontava para uma
identificação narcísica da paciente com o marido, já falecido, e essa
identificação ocorre comumente na melancolia, levando, naquele momento, a uma
hipótese diagnóstica clínica – psicose.
A esposa relata que, inúmeras vezes, pensou
em se suicidar, acreditando que esta seria a única forma de eliminar seu
sofrimento. Ao ser indagada sobre se havia pensado em como realizaria este ato,
ela responde que sim – com um tiro na cabeça, pois no coração poderia errar.
O risco de um suicídio, remetendo a uma
possível gravidade do caso, acarretava preocupação e instigava à reflexão. Uma
pergunta começou a se impor: ao risco de suicídio, poderíamos contrapor a
possibilidade de um trabalho pela palavra que viabilizasse uma mudança de
posição?
Outra pergunta surgiu posteriormente: até
que ponto a preocupação com a gravidade do caso, ligada ao risco de suicídio,
poderia ser articulada à própria insistência da paciente em torno deste tema? A
esposa costumava perguntar ao analista se a gravidade do seu caso lhe causava
preocupação.
No decorrer dos atendimentos, a paciente, ao
invés de falar em “matar” passa a utilizar a palavra “enterrar” – “eu preciso
enterrar o meu marido”. Este giro (matar para enterrar) nos sugere uma abertura
a um trabalho de luto, e, a partir de então, a paciente começa a apresentar um
outro discurso, diferente daquele trazido inicialmente, do quanto dizia
sentir-se “congelada”.
O trabalho analítico possibilitou a abertura
ao luto, permitindo repensarmos a hipótese diagnóstica inicial.
Concluímos, portanto, que a paciente
apresentava traços melancólicos em uma estrutura clínica de uma neurose, mais
especificamente, histérica.
Discutimos também a questão da depressão,
momento peculiar, em que as perdas aparecem de forma mais freqüente, o que
requer a elaboração de um trabalho de luto. Trata-se de perdas sucessivas e
variadas em relação ao corpo físico, sofrimento moral, morte de um ente querido
– marido ou esposa, filhos. Nesse contexto, nem sempre o sujeito consegue
elaborar lutos, razão pela qual a depressão parece ser cada vez mais comum após
uma longa experiência de vida.
Algumas questões suscitaram nosso interesse
em refletir sobre a depressão após ter vivido uma longa experiência: será que
existe uma particularidade na clínica psicanalítica nestes casos? O que Freud
observa sobre o atendimento psicanalítico aos nesta fase da vida?
Existiria alguma contra-indicação ou será
possível à clínica psicanalítica, visto que estamos lidando com o sujeito, que,
para a psicanálise, não envelhece?
Ângela Mucida (2004) afirma que, embora seja possível encontrar
na obra de Freud algumas contra-indicações da psicanálise para está fase da
vida, devemos considerar que estas foram proferidas em um determinado contexto
teórico-clínico do autor. Em vários momentos de sua obra, ao contrário, Freud
convoca o analista a desenvolver o dispositivo clínico por ele criado.
Dentre as contra-indicações referentes aos
adultos de idade mais avançada, encontramos a afirmação freudiana de que, não
sendo aplicável em todos os casos, a terapia psicanalítica teria algumas
limitações, entre elas a exigência de um certo grau de maturidade e compreensão
– não seria, portanto, adequada a jovens ou adultos mais novo e mentalmente
débeis ou incultos.
(Freud 1898, p. 268)
Observa, ainda, que “fracassa com pessoas
adultas mais experientes, porque o tratamento tomaria tanto tempo, devido à
acumulação de material, que ao fim elas teriam chegado a um período de vida em
que nenhum valor atribui à saúde nervosa”.
(Freud 1898, p. 268),
Após arrolar outras contra-indicações,
conclui “finalmente, o tratamento só é possível quando o paciente tem um estado
psíquico normal a partir do qual o material patológico pode ser controlado”.
Em seu texto “Sobre a psicoterapia”, Freud (1905 [1904]) afirma que a idade dos pacientes deve ser
considerada quando da indicação para o tratamento psicanalítico, já que, em
pessoas próximas ou acima dos cinqüenta anos, não haveria mais a plasticidade
dos processos anímicos de que depende este tipo de trabalho. As pessoas idosas
não seriam mais educáveis e, além disso, o material a ser elaborado prolongaria
indefinidamente a duração do tratamento.
No mesmo texto, Freud afirma que as psicoses,
os estados confessionais e a depressão profundamente arraigada seriam impróprios
para a psicanálise. Ressalta que não considera uma impossibilidade absoluta,
pois uma modificação apropriada do método poderia levar a superar a
contra-indicação no caso das psicoses.
Da mesma forma que em relação ao caso da
psicose, Freud mostrou-se um pouco resistente na indicação da psicanálise para
os adultos mais experientes, ao longo de sua obra. Porém, em alguns momentos, parece
repensar o assunto, como em seu texto “Sobre a transitoriedade”, em que Freud (1916[1915], p. 317) observa que “a limitação da possibilidade
de uma fruição eleva o valor dessa fruição”, referindo-se a uma flor que, por durar
apenas uma noite, não deixava de ser bela.
Comenta que, enquanto a transitoriedade
diminui a beleza da flor para uns, para outros, esta seria ainda mais
apreciada.
“Podemos pensar que, estando o sujeito mais
em contato com a própria finitude, o suposto pouco tempo para trabalhar em uma
análise seria, talvez, facilitador. É o que Freud observa, de forma poética, no
texto acima referido”.
(Mucida 2004),
A partir dessa afirmação freudiana, ressalta
que, para alguns adultos, o limite do tempo para se definirem algumas posições
subjetivas provoca a emergência do tempo de compreender e de concluir, ou seja,
podendo usufruir ainda mais do curto período de uma análise. Nesse caso, tendem
a se defender menos, resistindo menos que outros adultos ao tratamento
analítico.
Se para a psicanálise há o sujeito do
inconsciente e do desejo, logo, independente da idade cronológica, pode haver
uma aposta em uma análise. A tese principal de (Mucida 2004) está, justamente, apoiada no estatuto do sujeito para a psicanálise.
Com Freud e Lacan, o sujeito, referido ao
inconsciente, não envelhece, assim como o desejo se caracteriza por seu caráter
indestrutível e não dependente da idade. A atemporalidade do inconsciente
remete a um sujeito que não envelhece jamais.
Em “Nossa atitude para com a morte”, (Freud 1915) afirma que, no inconsciente, cada um de
nós está convencido de sua imortalidade, ou seja, o sujeito se comporta como se
fosse imortal, não acreditando na própria morte. É somente como espectadores
que podemos imaginar algo em relação à nossa própria morte. No inconsciente,
onde habita nosso desejo, não há uma representação simbólica da morte, razão
pela qual o sujeito crê e, muitas vezes, age como se fosse imortal.
Considerando o postulado psicanalítico do
inconsciente, não há como falar em idade cronológica, da mesma forma que não há
idade para o desejo, e, enquanto houver desejo, há uma aposta em uma análise. O
sujeito é o desejo, tal como Lacan afirmava.
Segundo Mucida (2004, p.31), há diferentes posições subjetivas que o
adulto pode ocupar frente ao próprio desejo e a amadurecimento implicaria “um
saber vestir esse desejo”. O que acontece, na maioria das vezes, é que a
entrada na idade adulta mais experiente implica uma ruptura com o desejo, uma
vez que é marcada por aspectos puramente negativos. A depressão seria, então,
uma possível ‘saída’, uma retirada estratégica para evitar o real em cena. A idade
adulta mais experiente poderia atualizar a problemática da castração a partir
do luto do que já se foi e de diferentes perdas significativas. A
aposentadoria, por exemplo, pode significar uma perda de poder e prestígio e de
laço social, podendo até mesmo ocasionar uma ferida narcísica grave. Para a
autora, não há idade adulta experiente sem luto, ou seja, a idade adulta
experiente implica poder realizar lutos.
Ainda em “Sobre a transitoriedade”, Freud (1916[1915]) indaga por que é tão penosa a retirada da
libido dos objetos perdidos. Sua observação o conduz a considerar que a libido
se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que foram perdidos, mesmo quando
um substituto já lhes acena. Ou seja, há uma grande dificuldade no abandono de
uma posição libidinal, o que explica o tempo bastante variável para realizar um
trabalho de luto.
As perdas advindas da velhice exigem, assim,
um trabalho de luto, pois é um momento no qual os rearranjos que o sujeito
realizou para enfrentar o real tendem a desmoronar, assim como muitos de seus
ideais. Não podemos negar que, apesar da perda não ser um corolário da idade
adulta experiente, estas se tornam mais freqüentes a partir de certa idade –
variável para cada um –, impondo elaborações para a construção de outros ideais.
Nesse sentido, a depressão aparece como uma resposta possível ao trabalho
inoperante do luto, devendo ser tomada sempre como singular, ou seja, em
relação ao sujeito que se diz “deprimido” e ao que seus significantes apontam.
Consideramos que o significante depressão
está cada vez mais acoplado ao significante na idade adulta experiente, como se
envelhecer ou tornar-se “um pouco mais velho” significasse necessariamente
ficar deprimido.
Com isso, na idade adulta experiente acaba
por ser duplamente excluído socialmente. Observamos, no entanto, que a
depressão não se manifesta apenas na idade adulta experiente, já que muitos
sujeitos entram na idade adulta experiente quando ainda jovens, ao abrirem mão
de seu desejo. É inegável, entretanto, que a depressão tende a surgir, de forma
mais incisiva, na velhice, devido ao acúmulo intenso de perdas, conforme
abordamos anteriormente.
Tomamos, como ponto de partida, o texto de
Freud (1917
[1915]), “Luto e melancolia”, a
fim de percorrer, em outros de seus textos, assim como nas contribuições de
Lacan e de Melanie Klein, um caminho de delimitação de cada termo, em articulação
com aspectos do caso clínico apresentado.
Verificamos que tanto o luto quanto a
melancolia, na maioria das vezes, são “reações” diante de uma perda significativa,
que pode ser de um ideal ou mesmo de uma “abstração”, como afirmava Freud. Se o
luto implica um trabalho de elaboração (Traüerarbeit) frente a uma perda
significativa, não sendo, em princípio, patológico, na melancolia não há a possibilidade
de simbolizar a perda, tratando-se de uma perda de natureza mais ideal.
A melancolia se caracteriza por um desânimo
profundamente penoso, cessação de interesse pelo mundo externo, perda da
capacidade de amar, inibição de toda a produtividade, e uma diminuição dos
sentimentos de auto-estima – “sentimento de estima de si” – a ponto de
encontrar expressão em se recriminar e em se degradar, culminando ainda numa
expectativa delirante de punição. No luto, “a perturbação da estima de si” está
ausente, assim como a
expectativa delirante de punição.
CONTINUA NO PRÓXIMO ARTIGO
O ANALISTA
FILÓSOSFO