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domingo, 7 de julho de 2013

PELO VETO AO ATO MÉDICO







Há duas ou três semanas que passou, milhares de cidadãos estavam nas ruas para denunciar sua indignação frente à conduta dos governos, em todas as suas instâncias, por estarem distanciados dos anseios populares – governando de modo auto-referente e pautado apenas pela negociata, visando o poder como o próprio fim. Enquanto isso, os Senadores decidiram aproveitar-se do momento turbulento para aprovar uma medida impopular que estava barrada no Senado desde 2002. Eles demonstraram, em ato, seu total desinteresse pela vontade popular, não ouvindo o clamor das ruas e, tal como Maria Antonieta, recomendando que os revoltados comessem brioches, decidiram aproveitar o ruído do momento para fazer passar o “Ato Médico”, medida descabida e francamente mercadológica. Essa atitude pode por si justificar toda a balbúrdia nas ruas, pois comprova que há muito se legisla no Brasil visando interesses específicos, utilizando-se de brechas para fazer passar na calada da noite medidas impopulares, numa prática de politicagem das mais miúdas.

O “Ato Médico” é o Projeto de Lei 025/2002, de autoria do ex-senador Geraldo Althoff (PFL/SC), com substitutivo apresentado pelo senador Tião Viana (PT-AC), que condiciona o acesso aos serviços de saúde à autorização do médico e estabelece uma hierarquia entre a medicina e as demais profissões da área de saúde.

O ato médico é um projeto de reserva de mercado. Quem imagina que esta proposta vem para qualificar os serviços e processos de saúde, se engana. Fato que vivemos em um sistema democrático regido pelos princípios do capitalismo, dentro de uma economia neoliberal. O ato médico caminha junto a esta ideologia.


Em outras palavras, diversos campos autônomos da área da saúde, regulamentado por seus Conselhos e com formação especifica, passam a ser considerados áreas subordinadas ao campo médico. O médico passa a ser o responsável pelo encaminhamento do paciente aos demais serviços, decidindo, desde fora desses serviços, qual deles ele julga conveniente para o cidadão. Isso impede que outros saberes contribuam na elaboração do diagnóstico, com seu olhar específico para o caso, impossível de ser alcançado pelo médico.

Esse PL também restringe aos médicos o direito de ocupar cargos de chefia, mesmo em serviços não exclusivamente médicos como CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família) e PSF (Programa da Saúde da Família).

O Ato Médico é uma medida classista, que atende à um lobby poderoso e que desvirtua o SUS. O SUS é uma conquista política e social e não pode sofrer este golpe que visa seu aniquilamento. Não é possível que se permita este retrocesso.

 
Para o leigo, por desconhecer a perpetuação da hegemonia colocada, pode parecer interessante que os usuários passem primeiro pelo médico, para depois se encaminharem para as “especialidades”. O que não se considera, no entanto, é que as diferentes áreas do campo da Saúde não são especificidades do campo médico, e sim saberes autônomos. O modo de um Psicólogo compreender um estado de tristeza, uma obesidade ou a droga dicção, por exemplo, nada tem a ver com a leitura médica, que pouco conhece acerca dos processos psíquicos. 

Cabe lembrar que os Psicólogos tem uma formação específica com a duração de cinco anos e aperfeiçoamento permanente, e obviamente tem uma compreensão do sofrimento psíquico mais aprofundada, crítica e abrangente do que um médico pode ter, nas poucas dezenas de aulas acerca deste tema. Diante de um paciente com algum desses sintomas citados acima um médico não tem como avaliar sua gravidade ou contexto para decidir qual a melhor estratégia para atender o sujeito. Mas, com a aprovação dessa PL, caberá a ele “decidir” sobre o destino desse caso, como se fosse portador de uma espécie de saber universal sobre o sujeito psíquico, somático e social.


Sabe-se que o SUS é uma conquista social e popular e que é regido por alguns princípios básicos, a saber: universalidade, equidade e integralidade. Estes princípios o norteiam como um projeto político de acesso ao direito à saúde. Além destes, existem outros princípios estratégicos como referenciais para sua concretização: descentralização, regionalização, hierarquização e participação social.

O projeto SUS caminha no sentido da implementação de uma política de direitos, que se choca com a política neoliberal. Ele é um projeto político de interesse social abrigado em um Estado que é constituído por ambivalências. Por um lado vem o SUS com a garantia de uma política alicerçada em uma clínica, que parte de todos os princípios que o regem. Uma de suas estratégias fundamentais, a clínica ampliada, considera a problemática do sujeito adoecido a partir de uma visão interdisciplinar. Por outro lado vem o ato médico, que assegura o conhecimento da medicina como único, hegemônico, totalitário sobre o sofrimento e o adoecimento do sujeito. Aí, não mais um sujeito, mas um corpo esvaziado.

Esta medida é, portanto, uma afronta à Multidisciplinariedade e a Transdisciplinariedade, marcas das diretrizes do SUS. De acordo com estas diretrizes, o diagnóstico e o tratamento devem ser realizados por equipes multidisciplinares, pois apenas essas podem levar em consideração a condição do sujeito como um todo, avaliando junto ao médico se uma doença resulta de mal-estar psíquico ou de condições sociais de risco, e como estes fatores interagem.


O ato médico é o representante da parcela neoliberal do Estado. Ele propõe que a demanda da saúde seja capitalizada por um determinado saber-poder. O ato médico desqualifica a singularidade do corpo, a singularidade do sofrimento, para fazer do corpo uma mercadoria controlada. Todos os saberes filosóficos, históricos, sociológicos, psicológicos e outros passam a ter menos valia diante do saber-poder do discurso médico sobre o corpo, seu sofrimento e sua subjetividade.

O corpo passa a ter o status de um corpo biológico, esvaziado de sua condição vibrante na produção de vida. Ele passa a ser compreendido soberanamente pelo aspecto biológico e fisiológico. Ou seja, lhe é subtraída a condição de heterogeneidade. E lhe é permitido que se expresse somente pelo discurso médico, no campo da saúde. Assim, o sofrimento do sujeito passa a ser reconhecido e legitimado pelos referencias do discurso médico. Dissociando-o de sua condição política, vibrante, subjetiva na vida, o corpo-sujeito fica esfacelado, recortado e controlado.

Nota-se que o projeto em clínica ampliada dentro do SUS reconhece o sofrimento do sujeito como campo político e clínico. Isto porque se entende como campo de saúde o campo de vida e não o corpo biológico. Assim, é uma incoerência sustentar uma proposta como o ato médico. Evidente que o corpo é o lugar privilegiado de incidência no que tange as práticas/poderes/políticas/saberes. Quando o ato médico, além de cooptar o sofrimento humano como campo da prática e do discurso médico (desautorizando outros saberes na participação da construção de conhecimento), assegura também que o controle dos equipamentos de saúde seja regido pelos balizadores do discurso médico, fica ainda mais claro o interesse da reserva de mercado.


A atenção integral prevista no SUS é uma conquista que deve ser defendida. É claro que o serviço oferecido ainda é criticável em diversas áreas, mas devemos exigir que se cumpra seu espírito multidisciplinar, pois apenas este pode ser capaz de intervir efetivamente nas condições de vida da população. As doenças orgânicas devem ser tratadas pelos médicos, mas elas nunca estão isoladas das condições ambientais, e apenas a confluência das diversas áreas no campo da saúde podem efetivamente compreender o contexto da doença para agir preventivamente ou impedir resistência ao tratamento. A multidisciplinariedade é, neste sentido, a mais eficaz e a mais interessante em termos econômicos, pois uma compreensão limitada do quadro ao diagnóstico médico poderá não resultar em melhora do quadro, podendo, ao invés, agravá-lo e levar as intervenções cada vez mais complexas, e até com abuso de medicalização (como vem acontecendo cada vez mais). Além disso, a doença que se apresenta é uma resultante de diversos fatores, e apenas a abordagem multidisciplinar pode agir em termos de prevenção.

É fundamental que os diversos profissionais do campo da saúde trabalhem de modo articulado, em parceria, realizando diagnósticos que considerem as diversas abordagens à saúde da população. Imaginar que o saber médico abrange e se sobrepõe a todo o campo da saúde é um enorme equívoco. Precisamos defender a autonomia dos diversos campos e fomentar o diálogo e a abordagem multidisciplinar, único modo de verdadeiramente atendermos à população com qualidade e respeito.

É preciso vetar essa medida nefasta, mas também repudiar os Senadores que se aproveitaram das manifestações populares para aprovar uma medida impopular e infrutífera que estava barrada desde 2002 por seu caráter polêmico, mantendo sua surdez à população, desonrando, mais uma vez, o cargo que ocupam. 


Em nome de todas as pesquisas científicas do campo da saúde coletiva – que vem dia após dia problematizando a importância das equipes de saúde trabalharem fundamentadas numa lógica não hierarquizada – e junto a outros movimentos, tais como o MPASP, rogamos que a Presidenta Dilma não fique de olhos e ouvidos fechados para o problema.

O FILÓSOFO

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