ESTADO LAICO
A única saída que temos para viver em
sociedade é criar e manter espaços de tolerância e respeito das diferenças. O
espaço público é o mais amplo registro disso. E o estado laico é o grande promotor
dos espaços públicos (escola pública, hospital público, praça pública, rua
pública, canais de televisão e rádio públicos, previdência pública, etc.).
Locais e instituições públicas são aqueles onde somos acolhidos a partir do
princípio da dignidade inviolável da pessoa humana. Se eu estou doente, se
necessito recorrer à justiça, se desejo estudar, eu vou a um hospital, a um
tribunal ou a uma escola (todos públicos), e ali sou acolhido com igualdade de
tratamento e respeito pela minha diferença, não importando minha orientação
sexual, meu pertencimento religioso, minha identidade de gênero. Sou tratado
com equidade. Quando quiser conviver exclusivamente com meus iguais, vou a um
templo religioso específico, busco um ambiente doméstico, freqüento um espaço
privado.
No sentido de tornar mais complexas as
relações entre religião e políticas públicas de gênero e sexualidade, e
contribuindo para lhes dar uma adequada arena de discussão, penso que os
pertencimentos religiosos dos indivíduos são também questões da esfera pública,
e não apenas do domínio privado. Em outras palavras, retiramos o tema religião
do local onde o ditado popular sempre lhe coloca: “religião não se discute, é
uma escolha pessoal”. Religião se discute sim, por ser um pertencimento
cultural, com conseqüências políticas na vida em sociedade.
Há uma “inevitabilidade” da religião como
política, que se dá pelo fato de que muitas pessoas vão entrar na arena
política, vão ingressar no espaço público, com sua identidade religiosa como
elemento importante. Tentar barrar isto, alegando que religião é algo do âmbito
individual, não produz resultados adequados nem contribui para o alargamento do
campo democrático.
Mais vale discutir esses pertencimentos,
indicando os limites que precisam ter, para não converter o espaço público em
espaço apenas de uma religião. O espaço público é plural e diverso. Novamente
aqui, o estado laico existe para moderar o “apetite” totalizante das religiões,
que buscam muitas vezes regrar tudo e todos por sua norma específica. O
regramento da religião vale, unicamente, para aqueles que aceitam, livremente,
pertencer a elas. Obrigar outros a seguir estas regras é amesquinhar o espaço
público. Novamente aqui, subtrair esta tendência totalizante das religiões no
espaço público é somar na força da democracia, que vai servir inclusive para permitir
que os crentes manifestem suas diferentes modalidades de crença sem estigma.
O pertencimento religioso não elimina a
autonomia dos fiéis. Na análise e compreensão do fenômeno religioso no mundo
contemporâneo, interessa destacar dois vetores: o pluralismo religioso, e a
autonomia religiosa dos fiéis. Atitudes que em um tempo passado eram “mal
vistas” hoje são comuns. Refiro-me em especial a duas delas. A primeira é o
pertencimento a mais de uma religião, efetuando uma combinação particular de
crenças. A segunda é a manifestação contrária do crente ao que diz o cânone de
sua religião[2]. O pertencimento religioso de um indivíduo não implica adesão
necessária ou completa as verdades daquela confissão.
Ele segue sendo um indivíduo que poderá
tomar atitudes diversas, tendo em vista o contexto, a argumentação apresentada,
sua história de vida pessoal e familiar, fatores contingentes. Com isso
valorizamos a existência do espaço público de discussão, no qual muitas
proposições se colocam, e todas elas devem ser ponderadas na tomada de uma
decisão.
O pluralismo religioso é marca da
sociedade brasileira, com forte crescimento das igrejas evangélicas
pentecostais, de várias denominações. Mas também dentro das igrejas aparece um
pluralismo, com correntes carismáticas, renovadoras, de teologia da libertação,
marianismo e outras, convivendo lado a lado na mesma estrutura.
O indivíduo nasce em uma religião, mas já
não pensa que é uma obrigação seguir esta orientação a vida toda. Em diferentes
contextos da vida, o sujeito opta por seguir parcialmente as orientações de sua
religião, por não seguir estas orientações, por seguir de modo mais estrito.
Mudar de uma igreja a outra, ou seguir na vida pertencendo simultaneamente a
mais de uma diretriz religiosa não é mais considerado algo a se envergonhar,
nem é mais tomado como “falta de consciência”. Tudo isto nos fala de uma
autonomia dos fieis frente à hierarquia, e indica também uma pluralidade de
formas de compreensão e vivência da experiência religiosa.
Encerro o texto fazendo um “voto de fé” no
horizonte normativo que acredito ser mais forte: o espaço público é o espaço de
negociação das possibilidades e limites de exercício do poder, e ele se
caracteriza pelo referencial das práticas democráticas e pelos esforços de
inclusão de grupos e indivíduos nos benefícios sociais. Desta forma, a
participação das igrejas (da fé organizada) nos debates políticos sobre
sexualidade (direitos sexuais e reprodutivos, reconhecimento de uniões
homossexuais, reconhecimento jurídico de adoções por casais homossexuais,
acesso a união civil ou ao casamento por parceiros do mesmo sexo, e muitas
outras questões) deve se pautar pelo respeito e alargamento do espaço público.
Por um lado ninguém deve ser proibido ou
constrangido de manifestar sua opinião apenas porque ela é baseada em valores
religiosos, ela é uma opinião válida no debate político. Por outro lado, está
vedado às instituições religiosas buscarem o estado para impor sobre toda a
população a particularidade de suas crenças e valores. Mais do que deixar isto
claro em leis e regulamentos (o que é obviamente necessário), o desejável é que
todos os atores sociais reconheçam a importância de preservação do espaço
público, como arena em que se busca a composição e a solidariedade entre
diferentes pontos de vista, tarefa por vezes muito difícil, mas inerente à vida
em sociedade.
O FILÓSOFO
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